O exercício de observar um espaço, levando em conta suas complexidades históricas, sociais e sensoriais, é um ato que deveria ser presente no cotidiano de quem faz arquitetura. Este ato, qualifica ações que dialogam com aquela espacialidade. Por isso, se torna essencial o uso da arquitetura como uma ferramenta de compreensão das dinâmicas dos ambientes que frequentamos.
Por um olhar curioso sobre os comércios informais, sobretudo as feiras de usados, é possível identificar que concentram uma diversidade de valores e simbologias presentes na sociedade: se formam a partir de uma movimentação coletiva, resistindo e se adaptando à violência econômica imposta pelo sistema capitalizado; se estruturam, também coletivamente, setorizando e organizando uma atmosfera através de suas necessidades; e estabelecem relações sociais entre aqueles que interagem no espaço, tanto entre si, como com os elementos com que trabalham. Partindo desta ideia e a partir de ferramentas arquitetônicas sobre como observar um espaço e suas dinâmicas, é revelada a importância de levantamentos variados (registros fotográficos, entrevistas, descrições sensoriais e táticas etc.) que evocarão o olhar sensível sobre o lugar dialogado.
A feira de usados é um tipo de comércio informal, organizada por grupos ou órgãos de pessoas interessadas, coletivamente, em ocupar espaços públicos da cidade e comercializar suas mercadorias de segunda mão (usadas) ou datadas de outra época. Costumam ter por volta de 200 pequenos comerciantes que se estabelecem em espaços públicos, como praças ou ruas, dispondo suas barracas e tendas lado a lado conforme permite o desenho de piso daquele lugar. Ao redor das feiras, contornando seus limites, por muitas vezes se encontra o shopping de chão. É comum, também, encontrar antiquários e/ou brechós em regiões próximas. As feiras de usados são constituídas por diversos agentes definidos pelas dinâmicas atmosféricas e sociais de suas espacialidades. Estes agentes, influenciados por aspectos internos ou externos às feiras, definem suas especificidades: disputas territoriais referentes a como se organizam espacialmente, que tipos de objetos serão encontrados ali, que pessoas irão frequentá-las, que tipo de comunicação estabelecem com seus transeuntes e etc.
Um visitante da feira de domingo estabelece conexões simbólicas e energéticas com seus agentes por estar inserido naquela atmosfera e por possuir relações entusiastas com o que acontece ali. Tais agentes costumam trazer, sob suas mesas e lençóis, reconfigurações de paisagens e vidas reais ou imaginárias que se tornam delirantes para aqueles que estão de passagem. E, paralelamente a isso, estes feirantes, de imediato, são diretamente relacionados com os objetos de desejo que possuem em suas mesas. Há um questionamento interessante dentro deste enquadramento. Será que não seria assim mesmo que eles querem que os imagine? Talvez os feirantes ajam, propositalmente, de maneira a fixarem no imaginário do comprador, se tornando um elemento aditivo a glorificação de seus objetos.
Essa perspectiva nos coloca frente a questionamentos organizacionais intrínsecos aos agentes das feiras de usados. Primeiro nota-se a formação de metodologias de organização, elaboradas pelos feirantes e garimpeiros ao desenvolverem percursos que transcorrem as tendas, barracas e lençóis, de maneira a expor seus objetos configurando espécies de “vitrines” que se comunicam com os compradores. A visão de Lina Bo Bardi (1951) sobre as “vitrinas” da cidade que denunciam e espelham as dinâmicas do espaço urbano e fazem cenário para a propagação de ideias e valores (BARDI, 1951) é importante para compreender esta metodologia. Da mesma forma que, para Lina, as vitrinas dialogam com a cidade, as feiras de usados se estruturam estabelecendo comunicações com o tecido urbano e seus visitantes – através dos percursos que nos levam a contemplar os planos que contém as mercadorias – e a cidade, espelhando suas lógicas.
Lina Bo Bardi se posiciona criticamente sobre as “vitrinas”, porque entende a manipulação das elites sobre este elemento arquitetônico, condutor de massas para seus próprios fins lucrativos. Apesar da atmosfera das feiras de usados ser um elemento cultural, é prioritariamente econômico e visa a geração aquisitiva. Por outro lado, sabemos, através de análises sobre o que é a cultura popular (ARANTES, 1988; BRANDÃO, 1984; BARDI, 1994) e o próprio debate de Lina sobre as “vitrinas”, que as produções populares, como eventos que surgem pela necessidade de inserção na sociedade e no mercado, são excluídas. Ainda sim, percebemos relações entre as formas que as feiras se organizam e as vitrines elitizadas. Isso acontece porque o comércio popular precisa se inserir em uma lógica econômica, que influenciará a venda de suas mercadorias.
Isto demonstra um gatilho impulsionador para metodologias de exposição desenvolvidas pelos feirantes e garimpeiros nas feiras de usados. Ao ressignificar os valores e símbolos dos objetos que comercializam, tanto por entremeio das composições feitas em suas mesas e lençóis, quanto pela organização espacial das feiras, esses agentes estão desempenhando ações curatoriais de exposição que se comunicam com os visitantes e compradores. Esta ideia pode ser debatida a partir das noções de espaço de arte observadas por Brian O'Doherty (2002) quanto às galerias e museus de arte modernas do século XX – Cubo Branco. O artista desnuda os aspectos de suas espacialidades, ensaiadas por sua arquitetura, apontando seus efeitos sobre o objeto artístico – liberto “para assumir sua própria vida” (GROSSMANN, Martin In O'DOHERTY, 2002) – e o visitante, que se vê frente às imposições de sua própria individualidade. Os agentes das feiras de usados fazem algo semelhante ao criarem, para aqueles que interagem com o espaço, dimensões onde suas mercadorias são protagonistas sobre o nível visual.
O constante contato com uma sociedade movida pela geração de dinheiro, dentro de uma atmosfera globalizada, impulsiona vícios consumistas e materialistas – satisfação, fetichizada, pelo comprar e possuir objetos de todos os tipos. A feira de usados possui estas características pois sua infinidade de objetos de consumo é, de fato, emocionante. Através do uso da arquitetura, algumas observações sobre a convivência em sociedade e suas influências surgem, como, por exemplo, quais as relações que tanto o espaço, como alguém, pode criar com aquilo que possui ou deseja. A partir de leituras como "A Natureza do Espaço: Técnica e tempo. Razão e emoção" do geógrafo Milton Santos (2006) e "Kitsch: a arte da felicidade" de Abraham Moles (1972) compreendemos como os objetos se inserem na formação de novos espaços. Abraham Moles (1971) nos traz a noção de "parque de objetos", onde supõe que tais materialidades compõem populações que se reproduzem e criam novas espécies. Para ele, a cultura, composta por um “entorno artificial”, é um compilado de palavras, formas e objetos e se divide de três maneiras: um mundo de signos, um mundo de situações e um mundo de objetos (MOLES, 1971: 9).
Destes questionamentos surgem as composições cenográficas feitas ao reunir coleções de objetos adquiridos em feiras de usados. As composições têm o intuito de dialogar com as metodologias desenvolvidas e performadas pelos feirantes e garimpeiros dos comércios informais. Além disso, tratarão de instigar as relações que estabelecemos, mesmo que inconscientemente, com os objetos que nos cercam cotidianamente. Ao mesmo tempo, tentam subvertê-los e atribuí-los novos valores que estarão sujeitos a interpretações próprias de quem as contempla.
As composições cenográficas foram idealizadas a partir desta atmosfera e de como os feirantes e garimpeiros se utilizam de mercadorias comuns. A partir de seus gestos inventivos, metodológicos e efetivos abrem as possibilidades de ressignificação das materialidades que nos acercam. Porém, as composições revelam possibilidades ainda mais profundas de ressignificá-las. Seus planos reconstruídos e ilusórios, de matéria sobreposta e não-planejada, tratam, simbolicamente, dos gritos humanos e vivos perante o que é estático. Perante as coisas que deixam de ser simplesmente coisa quando simbolizadas pelas suas funções sociais, políticas e culturais. Quando, por suas capacidades de imposição sobre ideias e valores, se tornam mais.
Todos objetos que compõem as cenografias, além de portadores de signos foram coletadas sob a "forma" exata de suas representações dentro da composição. Mesmo assim, suas representações seriam determinadas depois, em conjunto às outras e não sujeitas a um esforço funcional, mas sim imaginativo. Momentaneamente à construção e união das materialidades, o que sobressaia eram suas características principais de cor, textura e gestos. Além disso, seus fluxos harmônicos de composição, onde suas funcionalidades não estariam determinando suas alocações na cenografia.
Cada composição traz uma narrativa que dialoga ou espelha situações cotidianas e geográficas sobre a convivência em sociedade. A composição Colar Vitoriano (Figura 10) é coposta de um colar de pedrarias de acrílico garimpado num comércio de usados de “luxo” e embalado numa bandeja de isopor verde. O colar, cuja origem ou data de fabricação é desconhecida, junto da sutileza da bandeja e do plástico, parece possuir a harmonia perfeita de um produto de consumo de massa. Reproduzido, despachado e da moda. O isopor, produto querido das industrias e comércios por seu baixo custo, é, neste caso, pedestal para o tal colar magnífico. Esta composição traz à tona debates complexos sobre a indústria do mercado e de uma chamada sociologia da xícara de cristal (MOLES, 1972). Outras composições, como Jardim (Figura 11), por sua vez, retratam novas ou outras formas de imaginar espaços comuns aliadas a suas especificidades.
Novos planos, que não deste mundo, tiveram que ser imaginados para que possuam a possibilidade de ressignificação e reinterpretação deles mesmos. Ainda sim, é de você, leitor ou leitora, ao contemplar as composições cenográficas e seus elementos, escolher se irá manter-se num plano real ou imaginário, construído ou reconstruído.
Bibliografia
ARANTES, Antonio Augusto. O que é cultura popular. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988.
BARDI, Lina Bo. Tempos de Grossura: o design no impasse. ed. São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1994.
_______ Vitrinas. Habitat, São Paulo, n. 5, p. 60-61, out/nov/dez 1951.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é folclore. ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.
MOLES, Abraham. O Kitsch. A arte da Felicidade. ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
O'DOHERTY, Brian. No interior do Cubo Branco. A ideologia do espaço de arte. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4º ed. 2. reimpr. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2006.
O ensaio aqui exposto é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso desenvolvido pela Associação Escola da Cidade intitulado “Parque de objetos: um esforço da imaginação a partir do estudo de objetos reais”, com orientação do professor Ms. Yuri Quevedo.